quarta-feira, 9 de setembro de 2009

Conferência sobre desigualdade e injustiça social abre 14º Ciso na Fundaj

Por Rebeca Kramer e Tércio Amaral

“O mapa desse Brasil, em vez das cores dos Estados, terá as cores das produções e dos trabalhos”. Lembrando da frase de Gilberto Freyre, do poema ‘Um outro Brasil vem aí’, o presidente da Fundação Joaquim Nabuco (Fundaj), Fernando Lyra, abriu na noite desta terça-feira (8) a cerimônia do 14º Encontro de Ciências Sociais do Norte e Nordeste (Ciso). A abertura do evento aconteceu no auditório Benício Dias, na sede Fundaj, em Casa Forte, e contou com a conferência de abertura que abordou o tema do encontro, “Desigualdade e justiça social: regiões, classes e identidades no mundo globalizado”. O palestrante foi o economista Marcio Pochmann, presidente do Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada (Ipea).

A conferência foi antecedida pela mesa-redonda da abertura oficial do evento. Os integrantes foram o presidente da Fundação Joaquim Nabuco, Fernando Lyra; o reitor da Universidade Federal Rural de Pernambuco, Walmar Correia de Andrade; o diretor em exercício da Diretoria de Pesquisas Sociais da Fundaj, Wilson Fusco; a coordenadora do curso de Serviço Social da Universidade Católica de Pernambuco, Maria Vitória Machado; o coordenador-geral do evento, Joanildo Burity, e o representante da Faculdade Marista, professor Rômulo Pinto. De acordo com Burity, o evento, que acontece a cada dois anos desde 1990, parece não abordar um tema novo, que é a desigualdade. Mas, quanto mais for discutido e quanto maior a persistência no debate, maior possibilidade haverá de um maior ritmo de enfrentamento. “Desigualdade não pode ser ligada somente a chaves econômicas. Existem injustiças culturais, ambientais, de gênero, desigualdades de raça e conflitos étnico-religiosos, ora potencializados pela sociedade, ora minimizados pelas políticas de lei”, comentou.

Segundo a professora Vitória, a importância do evento consiste no fato da discussão não do que é a desigualdade, mas quais facetas ela pode assumir na sociedade. “Queremos justiça social, pois a desigualdade, surgida pela relação capital e trabalho, combate-se com direitos”, afirmou. Na conferência, o presidente do Ipea Marcio Pochmann destrinchou em três fases os momentos de desigualdades pelas quais as sociedades do século 19 e 20 já passaram, até as condições atuais da civilização. Pochmann defendeu dois elementos importantes no processo de investigação das desigualdades: o reconhecimento da questão como um padrão de manifestação e o estudo da temática ao longo de três séculos de desigualdades em termos diferenciados. “Somente quando de fato reconhecidas é que se estabelecem medidas de enfrentamento”, expôs. “Vivemos vários padrões de desigualdade e entendemos que os instrumentos que temos hoje não são suficientes para uma efetiva solução”, complementou.

Segundo o economista, discutir diferenças até o final do século 19 era estar prisioneiro de dois princípios, que conduziam o sentido de desigualdade para um fenômeno da naturalidade. O princípio religioso, cujas diferenças entre os homens eram justificadas sob o ponto de vista divino. E, depois, o princípio científico de que havia uma incapacidade da economia de gerar produtos e bem estar a todos. A ideia, que tem como principal manifestador o estudioso Thomas Maltus, colocava o homem pobre como único e exclusivo culpado pela pobreza por procriarem além do limite. “A desigualdade era responsabilidade dos desiguais. Era, portanto, normal que a morte acontecesse pela fome”, afirmou.

O presidente do Ipea falou, especificamente, de uma sociedade agrária. Com a expectativa de vida não superior a 35 anos e com um estilo de vida bastante rudimentar, a mulher era vista como uma máquina de reprodução humana que teria, durante a vida, de 15 a 20 filhos. “A mulher fora de casa não existia. Desde que o ser humano saiu das árvores e passou a caminhar de forma bípede, a mulher tem a função de reprodutora e o homem, como era mais forte, da caça e da pesca”, disse. Na sociedade agrária, ainda, as pessoas trabalhavam exatamente no local de moradia, com possibilidade de expansão territorial baixa. Por conta disso, durante seus 35 anos de vida, teriam conhecido apenas cerca de 100 pessoas. O conhecimento, em suma, era passado de pai para filho. A sociedade, que era heterônoma, tinha suas crianças já no trabalho aos 5, 6 anos porque não havia escola, trabalhando por jornadas elevadas. Uma pessoa que começasse aos 5 anos e morresse aos 35 teria trabalhado 70% da vida. “O elemento de orientação laboral não é o relógio, mas a iluminação solar. A jornada ia de segunda a segunda. Viver era, fundamentalmente, trabalhar”, ressaltou.

Na sociedade urbano-industrial a expectativa já se aproxima aos 100 anos. O padrão se assenta no trabalho material e no esforço físico do ser humano. “Nesse momento, o homem perde a autonomia no ciclo do seu trabalho”, comentou. Nesse momento, segundo Pochmann, a família do século 20 torna-se diferente. As mulheres terão dois filhos e viverão 60 anos. O trabalho será para além daquele doméstico, tendendo a ser mais valorizadas. As famílias aparecem menores, no entanto, emerge uma crise de sociabilidade, na reprodução de valores. “Agora, o conhecimento deixará de ser transmitido pelos mais velhos, pois ele será padronizado. Haverá uma escala local de transmissão de valores comuns no interior dos espaços nacionais: a língua pátria, o hino”, destacou. De acordo com ele, nesse momento, o trabalho se torna difícil de ser executado desde cedo. As mães já não podem mais levar os filhos para o serviço, havendo, assim, uma distinção entre moradia e local de trabalho. “Os pais passam a chegar mais tarde em casa e a relação social recoloca-se como forma de desigualdade. Abandona-se a ideia das diferenças por justificações divinas e por fatores científicos”, observou. “Não há mais justificativas para a desigualdade”.

Rousseau mudou o discurso da desigualdade para o viés político e de responsabilidade do próprio homem, devido ao direito de apropriação de terra. Mas o homem também tem o poder de mudar sua história, como dizia Hegel. Na ocasião, o economista expôs as possibilidades de alteração dos padrões de desigualdade: pela revolução ou pelas reformas. “As reformas, diferentemente da revolução, visavam gerar condições menos desiguais de oportunidades e não modificar completamente”, salientou. “Os impostos, que oneram os ricos, deveriam ser utilizados para minimizar essas diferenças”. Na sociedade do século 21, a educação é colocada como o elemento básico para a possibilidade de concorrência e, a essa altura, pela primeira vez, torna-se possível a quem não tem posses, mas que cedeu uma parte do rendimento financeiro ao governo por meio do pagamento de tributos, ter direito a uma aposentadoria. O principal elemento de riqueza não é mais o material, passando a ser o imaterial, por meio da sociedade dos bens e serviços. “No Brasil, 70% dos empregos estão no setor terciário”, destacou.

De acordo com Pochmann, o trabalho imaterial pode ser realizado em qualquer lugar, não precisando, como na sociedade agrária, ser executado no local do trabalho. “Na sociedade de subsistência, precisava-se da terra. Na urbano-industrial, era preciso ter a fábrica. Agora, dorme-se com o trabalho, sonha-se com ele. A tecnologia está ligada ao homem de hoje, com as atividades laborais sendo realizadas nos locais para além dos ambientes de serviço”, contou. O economista chamou a atenção para o fato de que a educação, em certo momento, ser procurada somente até a juventude. Hoje, o conhecimento do século 21 segue com a pessoa ao longo da vida, não sendo mais estanque e utilitarista.

“Um engenheiro que passava seis anos na Universidade, saía do curso com o diploma e apto a desenvolver a atividade e depois não pegava mais num livro. Agora, as pessoas buscam cada vez mais se especializar para conquistar o seu espaço. Afinal, não há mais a certeza de emprego garantido”. Nesse momento, as pessoas executarão trabalho e estudo ao mesmo tempo e terão tão pouco tempo quanto as do período agrário tinham. “É humanamente impossível ter bons resultados”, opinou. “O que está em jogo é financiar a igualdade, quando os filhos dos ricos entram para o mercado de trabalho depois de várias especializações enquanto o filhos dos pobres precisam trabalhar imediatamente para se sustentar e ajudar a família”. E essa facilidade acontece porque, segundo Pochmann, a tendência será as pessoas terem somente um filho. “Já foi, inclusive, descoberto o espermatozóide de laboratório. As mulheres não precisarão sequer ter um pai para suas crianças”, afirmou.

“Como financiar o ingresso tardio ao mercado de trabalho?”, questionou, para responder em seguida: “Com a reformulação da tributação e da propriedade. Ele acrescentou que não há tempo livre para o lazer e o diálogo na sociedade contemporânea. As famílias, quando reunidas, ficam em silêncio em frente à televisão. “Conhecendo a realidade tal como se manifesta no Brasil é que poderemos transformá-la e, assim, reverter a constituição numa nova maioria política”, finalizou.

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